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Papo de Futuro: Narrativas que inspiram

19/11/2020

Papo de Futuro: Narrativas que inspiram

Uma conversa sob a perspectiva dos corpos femininos no mundo e como essa vivência impacta na atuação institucional no campo da arte. Em mais uma edição da série Papo de Futuro, Jaqueline Fernandes, diretora do Festival Internacional Latinidades, e Keyna Eleison, diretora artística do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, debatem o tema “Narrativas de Existência – Futuro feminino, intuitivo e diverso”. A mediação é de Luciana Adão, coordenadora de Patrocínios Culturais Incentivados do Oi Futuro. A série Papo de Futuro, organizada pelo Oi Futuro, é transmitida pelo canal do Instituto no Youtube, com acessibilidade em Libras.

“Tento entender a potência de um corpo em silêncio e a violência de um corpo silenciado. Isso, para mim, é um grande desafio. Quando estou sendo agente de algo, ou algo está atuando em mim, à minha revelia”, ressalta Keyna Eleison. “Durante uma reunião, enquanto escutava as demandas de um dos mestres de cultura popular na Secretaria de Cultura do DF, ele apontou o dedo e me disse: Não se acostume ao seu salário! E isso reverbera em mim até hoje”, recorda Jaqueline.

Confira abaixo outras dez reflexões de Jaqueline Fernandes e Keyna Eleison sobre o tema “Narrativas de Existência – Futuro feminino, intuitivo e diverso”.

1)A trajetória de Jaqueline Fernandes

Natural de Planaltina, periferia do Distrito Federal, fundada há 160 anos – um século antes do Plano Piloto de Brasília, Jaqueline Fernandes vem de um lugar de fala onde a ancestralidade e a parte mais antiga da cidade se encontra com toda a modernidade da capital. “Convivo com essa dualidade e com essa dicotomia, e faço parte de uma geração de pessoas que entendeu que é preciso enegrecer esses espaços. Minha trajetória, tanto pessoal, quanto profissional, tem a ver com essa busca de colocar a cara feminina preta periférica nos espaços”. Jaqueline tem uma produtora, a Griô Produções, e fundou, há 13 anos, o Latinidades, maior festival de mulheres negras da América Latina. Desde então, ela vem trabalhando com gestão cultural, política afirmativa, e dirige o Instituto Afrolatinas, ao lado de outras mulheres negras periféricas do DF. “Noventa e nove por centro das coisas que fiz na minha vida têm a ver com arte e cultura e com política pública”.

2)Com a palavra, Keyna Eleison

“Eu nunca saí da relação de arte e cultura”. Carioca, formada em Filosofia pela UFRJ, Keyna Eleison é mestre em História Social da Cultura, com ênfase em História da Arte. Dentro de sua formação ancestral, é filha de Heloísa Mendonça dos Santos e Carlos dos Santos, neta de Amélia Eusébia Mendonça, de Marcos, de Isaura Varela e de José. “Essa pessoa que está aqui só seria possível com a formação que eu recebi de todas essas pessoas e das que vieram antes também”. Cantou, tocou percussão e piano, se aprofundou na arte-educação, atuando como coordenadora de algumas instituições, inclusive, no Oi Futuro, foi contadora de histórias, gestora cultural, trabalhou na Secretaria de Cultura. “Tardiamente, me encontrei como curadora e, agora, estou diretora artística do MAM-RJ, junto com Pablo Lafuente. Não existe possibilidade de pensar no meu trabalho, na minha trajetória, sozinha. Nesse sentido, quero agradecer à família que eu construí, porque, além de tudo, a minha intelectualidade está na namorada que eu sou, do Lucas, e na mãe que eu sou, da Eloá e do Calu”.

3)A experiência dos corpos no mundo

“Tenho usado muito o termo feminilizada e racializada, para entender como essa constituição binária traz essa violência para o nosso corpo. Percebemos muito como algo dado, mas é uma percepção como construção e, com isso, possível de se destruir. E me entendendo também como um tijolo dessa construção”, avalia Keyna. “Consigo trabalhar e desenvolver maleabilidade, musculatura e elasticidade para poder estar nesse mundo. A nossa geração percebe alguns usos que a presença dos nossos corpos pode trazer para os espaços. Como a minha presença em silêncio é pedagógica. Percebo muito isso dentro do campo das artes visuais, mas, também, quando me coloco como professora, como curadora, numa instituição em cargo de chefia. Algumas pessoas no meu espaço de trabalho, e por outros que eu passei, repensam falas e atitudes que estão normalizadas. Dentro da nossa estrutura, o corpo feminilizado e racializado traz a solução de problemas que não criei”. Keyna diz que isso foi uma questão que aprendeu, desde o início de sua trajetória, mas vem exercendo muito, inclusive, estar em silêncio para observar.

4)Abrindo caminhos e trazendo soluções

“Nossos corpos são políticos e divergentes, pelo simples fato que teve um desenho de qual era o nosso papel, o nosso lugar de fala. Na maioria das vezes, era um não-lugar, onde não concordamos com esse papel predeterminado. Quanto mais interseccionalidades atravessarem a gente, mais contra-hegemônico, mais divergente e mais violência”, observa Jaqueline.  Para ela, o que as mulheres estão fazendo, desde sempre, é abrindo caminhos e trazendo soluções. Esse modelo que cria um tipo de papel específico para as mulheres não é bom para a sociedade, ele fracassa em vários sentidos. O machismo é tão estrutural que demanda um outro tipo de comportamento. “É muito difícil se defender, enquanto a gente se avança de uma forma coletiva. Essa para mim é uma das principais questões, como mulher negra, de pele clara, mas sofrendo aspectos bem determinantes de um racismo, sendo periférica. Nossa presença nos espaços, silenciosos ou não, transformam os espaços”. Entre 2015 a 2018, Jaqueline foi subsecretária de Cidadania e Diversidade na Secretaria de Cultura do Distrito Federal, convivendo, em grande parte, com homens brancos. Durante uma reunião, foi como se lhe dissessem: ‘Aqui não é o seu lugar’. “O maior desafio, para mim, é carregar esse corpo, que se esquiva, enquanto é atingido, e que, ao mesmo tempo, não quer só sobreviver, quer construir”.

5)É preciso olhar para trás para avançar

Jaqueline cita um provérbio bantu: “Se você quer ir rápido, vá sozinho. Se você quer ir longe, vá em coletivo”. Para ela, a coletividade é essa tecnologia ancestral, tão em voga, e que, na verdade, é nova para a branquitude, para um pensamento ocidentalizado, individualista. Não é nova para as culturas negras, para os povos originários. “Vejo essa conversa toda sobre o futuro, o novo normal, como um novo ciclo de apropriação cultural. Quando olhamos para a história da cosmovisão ocidental, percebemos uma coisa totalmente maléfica, que é a necessidade de individualizar, de apagar saberes e histórias para refundar a civilização. A branquitude chega em determinados momentos, e se depara com civilizações sofisticadas, com ciências, filosofias, medicinas, e aí, fala: isso não existe. E daí faz uma coisa que não foi boa para ninguém, que é ter que começar do zero. Quando me deparo com consultorias, especialistas,  homens brancos, empresários, dizendo quais os atributos para um futuro, eu fico muito incomodada com essa mania de refundar, sem olhar para trás. Porque a inovação também olha para trás. Não é tabu voltar e recuperar o que você perdeu”.

6)O cotovelo da espera

Quando escuto a palavra ‘futuro’, comenta Keyna, me vem muito a ideia da flecha. “Para podermos alcançar o alvo, temos que fazer muita força para trás, precisamos entender a musculatura e a flexibilidade do que está atrás. E, mais importante que isso, é estar estruturada para poder lançar. Tem que estar com a mão no lugar certo, cotovelo no lugar certo. Sou apaixonada por cotovelo. Para mim, é a parte mais maravilhosa do corpo. O último texto que eu escrevi para uma revista internacional falava sobre a questão da espera. Porque a gente apoia o cotovelo para esperar. Tenho aprendido percepções de tempo muito diferentes. A ideia de futuro, para mim, é muito mais abrangente, porque ela não está só na frente, não está só atrás. Para alguns saberes indígenas, o passado está na frente porque é tudo o que a gente vê, e o futuro está atrás porque ainda não chegou, a gente ignora”. Keyna cita um livro da escritora afro-americana Octavia Butler, que faz uma viagem no tempo, onde o futuro influencia o passado, onde o tempo é uma invenção, uma construção, do mesmo jeito que é o racismo, o machismo. “Eu consigo vislumbrar algumas questões de futuro, que não passam necessariamente por uma relação linear. Para mim, não é só tempo. É espaço temporalmente”.

7)Como a arte pode ajudar a encontrar novas saídas

Keyna responde que é entendendo seus próprios limites, e se abrindo para possibilidades novas. Entender seus próprios movimentos de violência. Jaqueline complementa: “Estamos fartas de anti-racista que não age. Tem um chavão que me incomoda, que é essa coisa de que arte e cultura são um espaço estratégico para mudança. Não é verdade. Os poucos indicadores que temos são absurdos, de uma narrativa hegemônica e de uma insistência dos homens em permanecer nos espaços de decisão e controle. As artes e a cultura são um espaço potencial de transformação. Se você não assume esse dia a dia, nada vai levar a concretizar isso”.

8)As mulheres negras que serviram de inspiração

Para Jaqueline: minha mãe, dona Neusa, mulher negra que criou três filhos sozinha, como trabalhadora doméstica, e que viu esses três filhos protagonizarem uma história dos primeiros acessos à universidade. Mulheres poderosíssimas da minha família, que é um matriarcado. E minhas outras grandes referências: Jurema Werneck, Sueli Carneiro, Alane Reis, Eliane Teodoro, Ellen Oléria, Indiana Nomma, Djamila Ribeiro, Nilza Iraci, Vilma Reis.

Para Keyna: a família – Bernardina e Amélia Eusébia Mendonça, Isaura Varela dos Santos, Heloísa Mendonça dos Santos, Maria José Raimundo Pereira. Agora, as “menos famosas”, revela em tom bem humorado: Beyoncê, Conceição Evaristo, Carolina de Jesus, Clementina de Jesus, Octavia Butler, Denise Ferreira da Silva, Elza Soares, Alcione, Chimamanda. Amo todas!!!

9)“Voz Bandeira”

Acho que o encontro deveria ter encerrado com a letra dessa música, disse Jaqueline. A música em questão é “Voz Bandeira”, de Marina Íris, cujos versos foram citados, poucos minutos antes, pela mediadora Luciana Adão. Jaqueline agradeceu o convite, se mostrou à disposição de todos e passou o contato de suas redes sociais, @afrolatinas e @jaqueffernandess.

10)“A Mulher do Fim do Mundo”

Kenia se despediu com a música “A Mulher do Fim do Mundo”, de Romulo Fróes e Alice Coutinho, sucesso na voz de Elza Soares.

“Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qualé

Pirata e super homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor” …

Você pode conferir a íntegra do encontro online sobre o tema “Narrativas de Existência – Futuro feminino, intuitivo e diverso” aqui.

 

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