SILVIO MEIRA: ‘Fizemos o download de 25 anos do futuro para o presente”
17/07/2020
Por The Shift
Silvio Meira é professor extraordinário da cesar.school e cientista-chefe na The Digital Strategy Company. Ele é um dos 16 especialistas em futuro, tecnologia, arte e comportamento que fazem parte do line-up do Festival Oi Futuro, um evento online e gratuito que acontece nos dias 23 e 24 de julho, sempre a partir das 17 horas.
"O que aconteceu agora foi um apocalipse digital. E com um mecanismo peculiar: fizemos o download de 25 anos de futuro para o presente. Essa foi a impressão de quem ainda estava no analógico"
“A melhor resposta para quem está se perguntando que mundo é esse no qual estamos vivendo hoje foi dada pelo Paul Collier, diretor da Escola de Governo da Universidade de Oxford. Perguntaram a ele como é que ele imaginava que a gente iria viver depois da Covid-19. “A única resposta honesta é, eu não sei”, disse.
Eu combino essa resposta com outra, de que a Covid-19 não necessariamente vai mudar a direção de muita coisa. Mas vai acelerar muito a mudança, na direção das coisas que já estavam aí.
O que aconteceu agora foi um apocalipse digital. E com um mecanismo peculiar: fizemos o download de 25 anos de futuro para o presente. Essa foi a impressão que quem ainda estava no analógico teve.
Veja, o primeiro e-commerce é de 1994, e teve gente que só descobriu que precisava de um agora, quando precisou colocar uma loja no ar em uma semana. A pandemia de Covid-19 obrigou as empresas a correrem para os negócios digitais.
Esse cara tinha um negócio que, de repente, fechou. Mas, para sorte dele, existia uma infraestrutura global, barata, disponível, programável, sobre a qual muita gente já entendia.
Então, na prática, aconteceram dois fenômenos: a aceleração do analógico para o digital, desse cara que colocou um e-commerce no ar de uma hora para outra, mas está lá sem SEO, sem presença nas redes sociais, sem articular o fornecedor com o estoque e com a logística, sem ter uma estratégia de marketing digital, e outras coisas que um e-commerce contemporâneo tem; e a aceleração de quem já era digital, e passou a operar como plataforma digital, parte de um ecossistema em rede.
Quem já era digital e soube aproveitar a vantagem de saber escrever código, com foco, e dentro de um pensamento estratégico, também deu um salto gigantesco. E aumentou a distância entre quem saiu do analógico. A competição entre eles ficou mais acirrada.
Onde eu acho que falhamos miseravelmente? No sistema educacional. Os primeiros sistemas de computador como mediador de processos são do fim da década de 60. O que quase todos tentavam fazer era digitalizar o livro didático. E a gente continua construindo sistemas que tentam emular a aula. Nessa pandemia, quem não tinha um desses sistemas para usar, correu para ter. Teve até quem jogou as aulas dentro do WhatsApp.
Como a gente está falando de complexidade, o que o WhatsApp fez? Tirou a complexidade. Pegamos uma ferramenta que a pessoa já usava e redirecionamos para uma outra aplicação.
Tem uma coisa interessante aí: não tivemos nenhuma evolução tecnológica muito grande durante a pandemia. Nenhum sistema novo foi lançado. O que aconteceu foi inovação.
E inovação na melhor definição do Peter Drucker: atribuir novas capacidades aos recursos (pessoas e processos) existentes na empresa. O que vimos foram mudanças de comportamento de agentes de mercado com fornecedores e consumidores de qualquer coisa. Pessoas aprendendo a usar o que já estava disponível. E, a partir desse aprendizado, gerarem uma enxurrada de inovação.
Foi essa enxurrada que deu esse impacto aparente de aumento da complexidade da realidade ao nosso redor. Mas, na prática, houve uma redução da complexidade. Porque as pessoas deram um salto para outro patamar no entendimento da tecnologia. Descomplicou para muita gente, que foi forçada a aprender no mecanismo que eu batizei de ABC – Aprendizado Baseado no Caos – onde o Caos não é um método. O Caos é a licença. Já que está um caos eu tenho a licença de tentar do jeito que eu conseguir.
E tem uma coisa que não mudou: a natureza humana. Isso faz com que a gente tenha um enorme problema.
Minha tese é a seguinte: tudo é software. Existe um super-organismo chamado humanidade, que é hardware, que vem sendo construído todo interconectado e interdependente há 5 mil anos. Esse super-organismo só tem fragmentos desconexos de um sistema operacional. Nenhum desses fragmentos é bom o suficiente para o todo.
Não dá para espalhar nenhum dos fragmentos (modelo europeu, chinês ou americano) para lidar com esse vírus, esse ransomware que sequestrou um conjunto significativo de partes funcionais da humanidade inteira. Não só do mercado e da sociedade, mas das pessoas. Instalou um medo profundo, uma depressão, uma falta de desejo de existir, em muitos casos.
Nem assim as pessoas entenderam que a única saída era Ciência, Saúde Pública, investimento em um sistema global de vigilância sanitária. Que a gente precisaria ter um sistema operacional (um modelo Terra) para ter um antivírus rodando sobre ele.
Sem ter um sistema operacional e um antivírus, é só esperar a ocorrência do próximo vírus. E a falha não é da ONU. A falha é das lideranças da humanidade. Eles, e nós (cidadãos, empresas e governos), não estamos conseguindo construir um sistema operacional para esse super-organismo humanidade. Ao não conseguir fazer isso, estamos expostos a absolutamente tudo que vier pela frente.
Acho que a gente foi extremamente bem-sucedido em lidar com esse primeiro approach do caos provocada pelo apocalipse digital. Agora tem muita gente procurando pelo tal do novo normal. Tem uma galera, inclusive, que está querendo voltar para o antigo normal. E muitos poucos estão se preocupando com os novos normais. Porque não será um novo normal só.
O problema não é se a gente vai voltar a um novo normal, mas sim quais serão e de onde virão os novos normais, que serão muitos. E aí tem uma pergunta de segunda ordem que é a seguinte: como é que um negócio se posiciona em pelo menos um desses novos normais, que pode até não ser o mercado que ele atuava antes. Pode não ser o negócio que a gente estava antes. Pode não ser com as tecnologias que a gente usava antes.