O espectador e o sentido que ele oferece ao teatro
04/10/2018
Nascido em 1971 numa família de atores e escritores de Montevidéu, o premiado dramaturgo e diretor Sergio Blanco mudou-se para a França, onde estudou filologia clássica e direção teatral na Comédie-Française. Conhecido pelo estilo da autoficção, o autor terá duas de suas peças encenadas no Teatro Oi Futuro: “A Ira de Narciso”, dias 20, 21 e 22 de outubro, dentro da programação do Tempo_Festival, e “Tebas Land”, com temporada a partir de 9 de novembro.
OF. Em uma era tomada pelos reality shows, pela super exposição nas redes sociais e onde os limites do público/privado estão cada vez mais tênues, onde situa sua dramaturgia? Como classifica sua criação?
SB. Minha dramaturgia se situa justamente na tomada de consciência desta era de dispersão mediática. Como dramaturgo, é muito difícil para mim saber o que está acontecendo com o olhar do público. O visual é algo que muda permanentemente e não podemos esquecer que se escreve para uma arte onde o olhar é essencial. Nossa arte é fundamentalmente uma arte visual – a palavra “teatro” vem do termo “theatron”, que no grego antigo significa palco, cena – e, portanto, é uma arte que não pode ignorar essa questão. É fundamental ter a temperatura do olho, isto é, saber o que está acontecendo com aquele olho que virá nos ver. A visão deste início do século XXI diversificou-se consideravelmente em um mundo panóptico. Nas últimas três décadas, a perfeição tecnológica acabou criando uma mecânica perceptiva muito diferente do que era há algum tempo atrás. O indivíduo do século XXI passou de um procedimento de leitura linear da realidade para um procedimento de decifração fragmentária, no qual seu olhar se tornou impaciente. A partir da leitura em progressão consecutiva, passamos à atual percepção total, simultânea e fragmentária. E, diante dessas mudanças visuais e acústicas, não podemos ser indiferentes a uma arte que consiste em ver e ouvir. É importante estar atento aos mecanismos estéticos que operam na sociedade hiper-mediatizada para que possamos ser permeáveis à nossa contemporaneidade. Você tem que se abrir para essas novas linguagens.
OF. A arte contemporânea está sendo pautada, cada vez mais, por conceitos como “hibridismo” e por uma possível supervalorização da “interação”, por parte do espectador, como vê o teatro nesse contexto? Que atração pode exercer o espetáculo teatral, no aqui e agora? Nesse ano de 2018?
SB. Acredito na ideia do espectador emancipado, ou seja, acho que o espectador participa da criação do espetáculo. Não acho que ele seja um agente passivo, mas um agente ativo que está fazendo o trabalho junto conosco. O espectador é o elemento fundamental do andaime teatral. Pode haver teatro sem dramaturgo, nenhum produtor, nenhum diretor, pode até ter o teatro sem atores (as últimas experiências com androides no Japão, onde eu tinha estado a trabalho, têm demonstrado isso). No entanto, não pode haver teatro sem espectador. É ele quem finaliza a criação. O espectador é tão poeta quanto os criadores que estão do outro lado. Escrevo e dirijo sempre levando em conta que o espectador é alguém que nos dará um sentido. Quanto à atração que o teatro pode exercer, acredito que ele transmite uma força gravitacional muito forte sobre as pessoas. O teatro é aquele espelho escuro onde nos vemos. Mas não com um objetivo preciso e, sim, pelo puro prazer de nos contemplar. Nesse sentido, acho que a arte não cumpre missões messiânicas, isto é, não acredito que seja um instrumento para construir sociedades melhores ou para tornar as pessoas melhores. Eu acredito que a arte é inútil e que, como disse Oscar Wilde, é algo “perfeitamente inútil”. Eu gosto dessa ideia de inutilidade, é uma das coisas mais valiosas que a arte tem. Talvez isso possa nos ajudar a suportar alguns aspectos difíceis da existência, como o medo de morrer… Às vezes, eu acho que talvez a arte nos ajude a nos sentir menos sozinhos.
OF. O que o texto de “Tebas Land” tem de mais singular / de específico no conjunto de sua obra e até onde se assemelha com textos como “A Ira de Narciso” e “Kassandra”?
SB. “Tebas Land” conta a história de um encontro entre três mundos muito estranhos, e isso hoje nos reconforta. No argumento, a única sobrevivência da espécie humana está na consciência do outro: eu existo na medida em que há outro antes de mim e, portanto, devo isso a ele. Além disso, a peça, ao abordar o parricídio, refere-se a uma questão que muito nos toca: as ligações com os pais. Nem todos podemos ser pais, mas todos somos filhos e, portanto, todos temos a experiência da descendência. E finalmente, é um trabalho que conta a dinâmica do que é a engenharia da construção de uma peça, como o texto está sendo escrito. Quando se assiste “Tebas Land”, entra-se no disco rígido do que é a cabeça de um criador, e isso é muito agradável para os espectadores. “A ira de Narciso” e “Kassandra” são peças que se aproximam de mundos mais sombrios, são mais violentas. Se “Tebas Land” fala do paraíso da criação, acredito que a raiva de Narciso fala do inferno da criação. O que os três textos têm em comum é que são autoficcionais, gênero que eu venho cultivando há algum tempo e que consiste no cruzamento de histórias de vida verdadeiras e histórias fictícias, ou seja, peças onde o verdadeiro se cruza com a mentira.
OF. Está escrevendo uma nova obra? Quais são seus projetos para um futuro próximo?
SB. Acabei de escrever uma obra de forma manuscrita e sangrenta. Fiz isso com sangue em pó de touro, que mandei trazer da Espanha. Trabalhei durante dois meses e escrevi com caneta e à mão, me sentindo herdeiro de Montaigne, Lope de Vega ou Shakespeare. O texto fala de um escritor que prepara sua eutanásia em uma clínica de luxo em Genebra, ao mesmo tempo em que planeja entregar seu corpo a um jovem necrófilo que é especialista em caligrafia medieval. São temas tão encarnados que eu só poderia escrevê-los com sangue.