Realidade virtual para outra visão da vida real
28/08/2018
Por Gustavo Alves*
Apreender a realidade: você pode conseguir isso por gráficos, tabelas estatísticas, notícias, ouvindo o relato do porteiro, ou recorrendo à ficção – quem quiser saber como é o trânsito no Rio de Janeiro sem ter nunca visitado a cidade pode ir direto à última página de Crime e Castigo e o encontrará descrito no sonho de Raskolnikov. O entendimento do que está à nossa volta precisa sempre de algum tipo de narrativa, para ordenar os sinais externos que captamos, preservando o que é significativo e jogando fora o que não conta para dar-lhe um sentido. A Mostra BUG, que fica até o dia 9 de setembro no Centro Cultural Oi Futuro, reforça a importância da tradição da narrativa – ao mesmo tempo em que a explode.
A realidade virtual não é uma novidade. É encontrada em parques temáticos, filmes 3D, treinamentos militares, e está ligada à própria função da arte ao longo da História. Geralmente, ela se presta a nos tirar do dia-a-dia e nos jogar em outro mundo – como podemos imaginar que um cidadão da Parma do século XV se sentia quando entrava na capela Scrovegni e via as pinturas de Giotto que criavam um outro mundo para seus olhos, descrevendo os pecados que levavam ao inferno, as virtudes que garantiam um lugar no paraíso, um céu azul estrelado talvez mais bonito do que podia ser visto do lado de fora. O que há de novo na BUG é que ela mostra como este recurso não serve apenas para trafegarmos por ambientes imaginados e fantásticos. Serve também para se aproximar de realidades do nosso mundo que preferíamos não ter de encarar tão de perto assim.
Na BUG, ao invés de ler ou ver uma reportagem sobre a Guerra da Síria, somos jogados no meio de uma cidade destruída pelo conflito no meio do deserto; caminhamos ao lado de moradores que se tornaram soldados, ouvimos rajadas de metralhadora. Em vez de consultar estatísticas sobre o sistema prisional, encaramos detentos de um presídio americano e ouvimos as histórias de suas vidas, feitas de más escolhas combinadas à falta de oportunidades. A imersão dá ao espectador um outro nível de envolvimento com estes problemas: a combinação de imagens e sons, por meio de um par de óculos 3D e fones, elimina a ordem narrativa de um texto jornalístico, com seu quem fez o quê, onde, como e por quê, por exemplo. A imersão na realidade virtual retira a ilusão de que há um sentido que podemos extrair na realidade vivida.
Ao mesmo tempo, os vídeos de não-ficção da BUG reforçam como contar histórias é um costume que está ligado à própria condição humana. Sem os relatos dos presos e as entrevistas dos soldados no front sírio, não haveria como haver empatia com a situação mostrada ao nosso redor. Quando se pensa em quais técnicas poderiam renovar a prática da reportagem, a BUG aponta um caminho novo que não é impossível de imaginar no futuro das nossas casas conectadas pela internet das coisas. Em vez de assistir ao telejornal, será possível entrar na notícia para ter uma percepção maior dela, e nos colocarmos mais próximos do que vivem e sentem aqueles que são diretamente afetados por elas.
A ficção e as possibilidades de expandi-la também estão na BUG. Encontramos o Pequeno Príncipe e o ajudamos a cuidar do seu asteroide, antes de voarmos em um biplano pelos outros asteroides visitados pelo personagem do livro de Antoine Saint-Exupéry. Acompanhamos o romance de dois jovens japoneses em um mangá onde os quadrinhos com os desenhos aparecem à nossa volta. São opções de animação em princípio mais indicadas para crianças e adolescentes, mas qualquer um se encanta com elas. A evolução tecnológica não mata as velhas formas de contar uma história, mas aponta muitas alternativas para ela se expandir em outras narrativas.
No último nível da exposição, as novas tecnologias do mundo das comunicações são usadas para prestar homenagem à permanência à uma antiga forma de se comunicar à distância: os sinos das igrejas. Entrevistas, aplicativos e grandes telas mostram como são preservados em cidades históricas mineiras estes instrumentos que já foram o meio por excelência para alertar populações de mortes, invasões, calamidades ou assembleias, a partir da Idade Média.
É uma maneira coerente de se terminar a visita, assim como faz sentido que o primeiro ambiente imersivo nos permita ter a ilusão de podermos desenhar flutuando no espaço: criar traços e manchas ao nosso redor é a base da execução de representações que criaram novas realidades na arte – e da criação das narrativas que se basearam nelas para serem contadas.
Realidades virtuais e outras formas de realidade expandida já foram testadas anteriormente, como conta Oliver Grau em “Arte Virtual”, talvez um bom livro para se iniciar pelo assunto. Sacros Montes foram criados na Europa para compensar a perda de Jerusalém e do Santo Sepulcro para os muçulmanos – é deles que se originou o conjunto de profetas esculpidos por Aleijadinho em Congonhas do Campo. No fim do século XIX, imensos panoramas – painéis circulares pintados em escala natural – eram sucesso na Europa, para retratar episódios como a Batalha de Sedan, em que a Prússia garantiu a vitória contra os franceses e a unificação alemã sob seu comando, em 1870. Algumas destas realidades virtuais continuam a nos impressionar, caso das obras de Aleijadinho. Outras, como os panoramas pintados, já se perderam. É certo que novas tecnologias, como a fotografia e posteriormente o cinema, contribuíram para aposentá-la. Mas elas poderiam ter tornado obsoletas também o trabalho em pedra-sabão de Aleijadinho ou a pintura de Giotto. O que as faz ainda ser valorizadas é o empenho em transmitir nelas a experiência humana por meio de uma técnica. É o que deverá também determinar, no futuro, quais narrativas continuaremos a ver e quais esqueceremos por óculos e fones para entrar em outros mundos.
* Jornalista, artista plástico e colaborador da Oi.