A rede é pra deitar: experiências e reflexões sobre as novas formas de consumo cultural – por Luciana Adão
06/04/2020
Confira o artigo publicado por Luciana Adão, coordenadora de Cultura do Oi Futuro, que aborda experiências e reflexões sobre as novas formas de consumo cultural que vêm emergindo na internet no período de isolamento social coletivo.
A rede é pra deitar
Luciana Adão
A pandemia desconhece fronteiras e colocou o mundo em estado de suspensão e espera. As rotinas passaram a incluir cuidados extras como lavar as mãos em modo contínuo, não transitar nas ruas e praticar o isolamento social.
No momento em que o mundo está confinado aprendemos a enxerga-lo através de janelas diversas, principalmente as dos celulares, tablets e computadores. Em nossas semanas mudamos os hábitos e estabelecemos novas rotinas. Na busca de novas formas de convivência, as janelas nos possibilitam trabalhar, virar atletas virtuais, participar de grupos de reza, comemorar aniversários e até mesmo iniciar (ou finalizar) relacionamentos.
Falando em relacionamento, estou em um sério com as lives de todas as redes sociais – instagram, twitter, facebook – fenômeno de comunicação e formação de vínculo entre os artistas e seu público. Estamos falando aqui do “artista humanizado”, despido de toda a infra-estrutura dos shows, estabelecendo uma conexão com a plateia diretamente de sua casa, com barulho de cachorro, com as crianças passando, com a mãe acompanhando, com o companheiro segurando o celular , tomando sua cervejinha e conversando com o público que está pedindo alguma música, poesia, texto, naquele momento.
Como não se emocionar com a Teresa Cristina cantando samba – canção com sua mãe? Ou não ir às lágrimas com a emoção do Pedro Miranda em um domingo à noite cantando o Paulinho da Viola? Ensandecer com o Brian May tocando guitarra na sala de casa? Ficar vidrado no Coro na Quarentena em que artistas leem textos de espetáculos inéditos, textos de filósofos e realizam performances? Refletir sobre mudanças num diálogo com Emicida, Lázaro Ramos e Pastor Henrique Vieira? Assistir a um filme e debater com o Dodô Azevedo? Ou enlouquecer com o line-up do festival dos festivais organizado por artistas e curadores de todo o Brasil?
Estamos presenciando uma transformação no consumo de arte, na estrutura das redes e na relação artista-espectador em pleno processo. Divido algumas reflexões iniciais:
Sob o ponto de vista tecnológico, assim como Nam June Paik foi fundamental para o desenvolvimento das funcionalidades de câmeras e Tvs através dos processos artísticos de experimentação, as lives dos artistas provocam no mínimo o desenvolvimento de novas funcionalidades para esses apps– tempo de duração restrito, número limitado de pessoas que pode participar simultaneamente das apresentações e funcionalidade não adaptável ao notebook são algumas inicialmente observadas.
O consumo de cultura se estabelece sob o paradigma da humanidade dos artistas, dos eventos e das instituições no relacionamento com seus públicos. Desnudar-se é tornar-se humano, todos partem de um mesmo ponto – no momento atual de suas casas – e trilham caminhos paralelos apresentando seus ofícios, dividindo conhecimento e estabelecendo um diálogo direto sem intermediários, dividindo o protagonismo entre o público e o artista. Estamos falando de um vínculo perene que provavelmente mudará a estruturação das experiências físicas e desdobramentos na construção dos shows, festivais, peças, saraus, exposições e programas de fomento.
Outro aspecto interessante é o fomento a partir de causas. Crowdfundings, matchfundings, vaquinhas, assinaturas e doações existem e são práticas recorrentes, mas a inversão do processo com o protagonismo do público na construção de engajamento em torno de artistas, valores e ações sinalizam uma mudança estrutural nos hábitos de consumo em um futuro que é hoje.
Nesse cenário de suspensão, voltamos a aplicar o sentido inicial das “redes sociais” que é a conexão afetiva e efetiva de pessoas. A rede que propaga notícias falsas e fundamentalismos através das suas janelas aproxima, rompe fronteiras, afaga e nos reapresenta à infinitude da nossa finitude, à nossa humanidade. Como disse Gilberto Gil certa vez, a rede é pra deitar.