Papo de Futuro: Territórios que inovam e transformam
12/06/2020
Papo de Futuro: Territórios que inovam e transformam
Em sua forma mais simples, território significa área delimitada do espaço, mas, neste encontro, abordamos o conceito de território para além de suas fronteiras: como um espaço múltiplo e pulsante das relações humanas e culturais diversas, que formam nossa identidade enquanto sociedade, sendo um campo fértil para inovações e transformações sociais. Pâmela Carvalho, educadora, historiadora, gestora cultural e comunicadora, e Carlos Humberto, fundador da Diáspora.Black, negócio social acelerado no Labora em parceria com a Yunus Negócios Sociais, debateram o tema “Territórios criativos, sociedade inovadora”, durante o décimo-primeiro webinar da série “Papo de Futuro”, organizada pelo Oi Futuro e transmitida toda quarta-feira, às 19h, pelo canal do Instituto no Youtube, com acessibilidade em libras. O encontro virtual foi mediado por Sandro Rosa, do Oi Futuro.
Coordenadora na Associação Redes de Desenvolvimento da Maré e fundadora do Quilombo Etu, Pâmela Carvalho ressalta: “Os territórios falam”. Carlos Humberto, que tem como iniciativa em seu negócio conectar viajantes e anfitriões interessados em cultura negra, enfatiza: “Um dos elementos para qualquer cidadão é a autoestima”.
Confira abaixo outras dez reflexões de Pâmela Carvalho e Carlos Humberto sobre o tema “Territórios criativos, sociedade inovadora”:
1)A relação com os territórios
Nascida no Morro do Juramento e vinda de uma família muito conhecida por lá, Pâmela Carvalho é a neta do Valdir e filha do Bolão. A relação com o olhar territorial muda totalmente quando vai morar na Maré e passa a ser reconhecida. “Favela não é lugar da ausência e, sim, da potência”. Se hoje tem um espaço de fala é graças ao investimento de sua família e de organizações de favela. Outro território, embora não tenha morado, mas trabalhado, é a região da Pequena África. Sua primeira carteira assinada foi no Museu de Arte do Rio, na Praça Mauá. Passou a ter um olhar muito específico para aquele território e a fazer um exercício de escuta ativa para que o trabalho fosse menos verticalizado e mais horizontalizado. Todos esses lugares – essencialmente negros – foram espaços que qualificaram o seu olhar para os territórios.
2)O quilombo como espaço de liberdade
Há cerca de dez anos, Pâmela se dedica à cultura popular. São manifestações da musicalidade, de epistemologia negra e indígena, que incluem jongo, tambor de crioula, maracatu, samba de roda, capoeira. Quando surge algum trabalho, faz questão de chamar pretos, pobres, mães, LGBTQI, enfim, pessoas sempre à margem das oportunidades de emprego. Com irmão e companheiro percussionistas, resolveu nomear o que faz e criou o Quilombo Etu, que parte da cultura negra, da educação e do território. Promoveu oficinas populares para crianças, o que se tornou essencial para a perspectiva de trabalho. Pâmela e seus três irmãos são filhos de uma merendeira e de um segurança. Durante a pandemia, fundou o projeto “Toca e fala”, pequenos vídeos contando histórias de favelados, com um olhar positivo. Pâmela faz referência a mulheres intelectuais negras, como Beatriz Nascimento, que pensa as favelas como quilombos contemporâneos. Houve um período em que a favela era a nova senzala, mas, estabelecendo um paralelo com o período colonial, vemos o quilombo como um espaço de criatividade, de inventividade e de liberdade.
3)A leitura da própria história
Geógrafo, formado pela PUC-Rio, Carlos defendeu, em sua monografia, o conceito de territorialidades negras e, na época (2006), o Departamento de Geografia da Universidade disse que o conceito não existia. Fico muito feliz em provar que não só existe, mas como é resistência. Morei em um terreiro durante 14 anos. “Vivenciei inúmeras experiências de racismo até chegar à Diáspora.Black, empresa de tecnologia para venda de turismo, cultura negra e treinamentos. Sou filho de Oxossi e nenhuma barreira foi capaz de nos deter. A cada jornada, fomos apoiados por instituições que fazem formação de negócios e algumas se tornaram grandes parceiras como o Oi Futuro (participou da primeira turma do Labora)”. Começou com venda de hospedagem (em casas, hotéis, pousadas e resorts). Depois, partiu para a venda de experiências – roteiros culturais e gastronômicos, tudo que dá dimensão aos legados da comunidade negra. Maceió, por exemplo, é um dos maiores redutos turísticos do país, mas quantos turistas visitarão o Quilombo de Palmares? “Precisamos garantir que os hoteis não vão oferecer um serviço racista e que as companhias aéreas contratem funcionários negros. Além disso, desenvolvemos o TBC (Turismo de Base Comunitária) nas comunidades convencionais, por entender que algumas têm recebido um turismo predatório, que não respeita os espaços simbólicos”.
4)A casa como espaço sagrado
“O turismo traz elementos para o fortalecimento da nossa auto-estima”, reconhece Carlos. Vejo a casa como um lugar de prazer de estar ali, seja pequena ou grande. O importante é se sentir bem. Morei em uma casa de alvenaria, que não tinha banheiro. Mas sentíamos um grande orgulho de toda a família por estar ‘em casa’. Esse local é de valorização de um espaço físico, da nossa história. Quase como um relicário, com suas memórias. Trabalhar com casas pretas não é pelo valor físico, tangível, mas pelo valor imaterial. Isso vem contribuindo para a auto-afirmação de muita gente. As famílias devem se orgulhar em mostrar a sua casa. Tenho relatos, como o de uma pessoa que nós a ajudamos a entender que na casa dela havia um espaço para fotografar.
5)Memórias afetivas e escuta ativa
No momento, Pâmela coordena um eixo na Redes de Desenvolvimento da Maré chamado Arte e Cultura, Memórias e Identidades, que gera uma discussão interessante sobre a escuta ativa dos territórios. Como exemplo, ela cita “Cidade de Deus”, filme de extrema importância para a trajetória dos atores, mas, por outro lado, inserido em um contexto de produção audiovisual. Às vezes, quando perguntam sobre o meu trabalho e eu não falo de pobreza e esgoto a céu aberto, e cito meus eventos, minha produção artística, as pessoas ficam indignadas. Como assim? É a partir da escuta ativa que conseguimos entender o que o território está falando e contrapor isso a um discurso hegemônico. A escuta ativa requer humildade. Acho que a nossa sociedade precisa ouvir mais, aprender mais, com pessoas pretas, com favelados, professores, que, às vezes, já estão produzindo narrativas e soluções.
6)Empreendedorismo e Meio-Ambiente
Empresas e empreendedores que desenvolvem o conceito de sustentabilidade, às vezes, enxergam uma sustentabilidade para fora, avalia Carlos. Vejo como determinante algo para se construir uma sociedade menos desigual e menos racista. Trabalhamos com valores relacionados à comunidade negra. Isso não foi criado por ambientalistas nem por intelectuais e, sim, nas matrizes africanas. Quando eu falo que o rio é sagrado, que representa a energia de Oxum, sei que tenho que me relacionar com aquele rio de uma maneira simbolicamente sagrada. E ai se pode incorporar isso dentro dos seus valores, como empreendedor. Desde ações que prezem pelo descarte do material a aquelas que pensam a dinâmica de contratação, quem são os seus fornecedores, de quem você está comprando. Aprendemos a atuar com foco nos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas).
7)Como estimular os territórios periféricos
Durante a pandemia, percebemos que favelas e periferias têm uma série de ciências e tecnologias que vêm funcionando muito bem, apoiando as populações em momentos de crise, comenta Pâmela. Um amigo da Maré recebeu um convite para fazer a produção local de um videoclipe, alugando a casa dele com laje, piscina ou caixa d´água por R$ 100,00. Em que lugar do mundo se aluga a casa de uma pessoa, com uma série de exigências, em plena crise, por esse valor? Eis um tipo de relação que estamos fugindo. Queremos somar, pensar junto. Historicamente, a construção da nossa sociedade com a favela não é de troca, é de sugar, de usurpar, de extrair o máximo que pode. Não é essa a construção que queremos. Temos dito ‘não’ e, às vezes, as pessoas ficam chocadas. E como fomentar? As favelas e periferias, por si só, já têm muita produção. As pessoas não consideram o baile funk ou o forró como um evento cultural. Os territórios já produzem; o que precisamos é de apoio do poder público e da iniciativa privada. Vale lembrar que temos uma leva muito grande de produtores culturais favelados.
8)Como concretizar as experiências em tempos de pandemia
É um desafio colocar os dois mundos para conversar, o físico e o virtual, reconhece Pâmela. Em várias favelas, a internet ainda é um ponto de discussão, nem todas têm um serviço de qualidade. Eu mesma busco algum ponto onde pegue o 4G. Minha primeira live foi feita na rua porque meu wifi não funcionava. Carlos vê esse momento com uma grande complexidade. Somos nós, negros e negras, que estamos morrendo mais. “Eles combinaram de nos matar e nós combinamos de não morrer”. Hoje, por questões de saúde e prevenção, precisamos evitar ir para as ruas. Mas isso não quer dizer que não podemos nos organizar e planejar para a retomada.
9)Principais impactos nas iniciativas
Pâmela pensa os impactos a médio e longo prazo. Um aspecto importante é a questão da macumba.“Vivemos numa sociedade tão racista que vulgariza os nossos saberes e as nossas práticas de uma forma absurda”. Jongo, maracutu, capoeira, samba de roda, tudo é englobado como macumba. As religiões africanas fazem parte da nossa construção. Temos tentado quebrar o racismo religioso. Carlos diz que a Diáspora trabalha com muitos impactos. Quando buscamos a dinâmica de valorização dos nossos legados, vendo a população negra como agente dessa valorização, nós trazemos impactos, desde subjetivos, de conhecimento, de afirmação, como o movimento econômico “Black Money”. Temos gerado alguns impactos nessa grande rede, oferecendo conteúdos de afro-empreendedores, artistas e produtores culturais. Para nós, esse é um espaço de fortalecimento, onde podemos compartilhar dores, sentimentos e olhares.
10)Transformações da sociedade após o isolamento
Pâmela se queixa de como o Brasil foi ‘roubado’ das populações indígenas. Fomos forjados, enquanto nação, em cima de paradigmas racistas. Existe uma elite que só é elite porque existe uma desigualdade. Não consigo dizer que o mundo vai mudar, que seremos mais solidários. No momento, quem está botando a cara é a população de favela, encampando grandes iniciativas de arrecadação, doação, entrega de cesta básica. O que eu consigo projetar é que as favelas estão cada vez mais autônomas, que a população preta está agindo cada vez mais, e que o nosso pavio está encurtando. “Não sei se conseguiremos tangibilizar o resultado dessas mudanças”, complementa Carlos. Há algumas significativas nas relações de trabalho, sociais e intersociais. As futuras gerações irão gozar as transformações que foram fruto desse momento. Tenho visto por aí muita coragem e solidariedade.
Você pode conferir a íntegra do encontro online sobre o tema “Territórios criativos, sociedade inovadora” aqui.